Com 115% de inflação, argentinos criam cofres inusitados para guardar dólar

TAB - 2 de Agosto de 2023

Todo fim de mês quando tem dinheiro sobrando, a fisioterapeuta argentina Leticia*, 29, compra dólares. Desde que começou a trabalhar, há 8 anos, ela prefere manter suas economias fora do banco — temendo o impacto da desvalorização permanente do peso argentino e da inflação, que hoje acumula um índice anual de 115% no país.

«Como vamos economizar se não for em dólares?», questiona, unindo os dedos das mãos em gesto de indignação, quando perguntada sobre se as amigas da sua idade fazem o mesmo. «Todas as que conseguem. E guardam em casa», relata a TAB, sobre o hábito que persiste há gerações no país onde a maioria dos preços, inclusive de produtos nacionais, oscilam de acordo com o aumento do dólar.

Os pais de Leticia enterraram, por anos, suas economias no jardim de casa. Ficavam em maços de dólares, protegidos por muito plástico, dentro de uma caixa. Para lembrarem onde colocaram, instalaram um poste sobre o esconderijo. Após muitos anos intocado, o dinheiro foi utilizado para comprar a casa própria – dois anos depois da crise de 2001, quando o governo de Fernando De La Rúa limitou saques bancários para evitar a fuga de dólares do sistema financeiro. Dias depois, o peso, que valia 1 dólar, chegou a um quarto do seu valor.

O episódio fez com que muitos argentinos passagem a economizar em dólares. Mas os pais de Leticia provam que o hábito vem de muito antes deste dramático início de milênio. Há décadas a população local, traumatizada com as constantes desvalorizações da moeda, confiscos e falências de entidades financeiras, inflação alta e hiperinflação, não confiam nos bancos para guardar suas economias.

‘Por desconfiança, a população se protege na moeda norte-americana’, explica Juan Piantoni, da Ingot, que aluga cofres

Imagem: Divulgação/Ingot

Entre US$ 200 e 400 bi

Calcula-se que entre US$ 200 bilhões a US$ 400 bilhões pertencentes a argentinos estejam fora do sistema financeiro, em moeda estrangeira ou ativos no exterior. Os muitos que guardam em casa pensam nas mais diversas estratégias para esconder os dólares: protegidos por plástico e grudados na parte traseira de privadas e bidês, em cofres embutidos cuja entrada simula uma tomada e até dentro caixas de gelatina na dispensa.

A avó de Leticia costurava as pontas das mangas de casacos no armário para jogar seus dólares dentro. «Ficavam lá pendurados, e também dentro de calcinhas dobradas, ou de potes e de vários lugares que ela às vezes esquecia», conta, divertindo-se, antes de lembrar de mais um esconderijo: «Ela também rasgava o forro dos casacos, colocava dólares e costurava de novo.»

Demetrio*, 46, zelador de um prédio na capital argentina que trabalhou com móveis e instalações, conta que já viu de tudo. «Encomendavam fundos falsos de armários e gavetas escondidas na decoração das escrivaninhas. Íamos a feiras de antiguidades e comprávamos coleções de livros com vários volumes e, em um deles, fazíamos um cofre com chave», descreve. Hoje, lojas de cofres já exibem nas vitrines esse produto pronto.

Ele conta que, há um ano e meio, um pedreiro lhe relatou ter encontrado dois maços de 10 mil dólares dentro da parede de um banheiro que estava reformando. «Não sei se o arquiteto que pediu para ele derrubar a parede foi contratado pelo filho do proprietário que morreu ou por um novo dono, mas o lugar estava vazio, ninguém reclamou. E o pedreiro acordou no dia seguinte com 20 mil dólares», garante.

Dólares em caixas, na parte traseira de privadas e bidês e costurados em forros de casacos

Imagem: Arquivo pessoal

Operação de risco

Há alguns meses, o zelador foi contratado para retirar objetos de um apartamento onde morava uma idosa. «Quando chegamos, coleções completas de livros estavam revirados, porque os filhos tinham procurado dólares entre as folhas». Em outro apartamento, ele encontrou um cofre sob o piso falso de um armário. A filha do dono chamou um chaveiro e, como era de se esperar, havia dólares dentro.

Também é comum escutar histórias de argentinos que compram móveis usados e encontram dólares escondidos. No ano passado, trabalhadores municipais encontraram US$ 50 mil dentro de um guarda-roupa em um lixão a 100 km de Rosário, na província de Santa Fé. Como muitas notas tinham se espalhado pelo local pelo uso de uma escavadora, a notícia circulou rapidamente. Moradores da região correram para o lugar e iniciaram uma caça ao tesouro que seguiu dia e noite, com a ajuda de lanternas, e resultou em mais milhares de dólares encontrados.

Naquele momento, a moeda norte-americana estava cotada em 300 pesos no mercado paralelo de câmbio (desde o final de 2009, no final do governo de Mauricio Macri, a compra legal de moeda estrangeira é restrita a somente 200 dólares mensais por pessoa). Um ano depois, cada dólar é vendido a 550 nas casas de câmbio informais.

A prática de guardar as economias em casa implica riscos: não são raros casos como o ocorrido há três meses, quando um homem de 61 anos foi dopado por uma golpista e teve mais de 100 mil dólares subtraídos do seu apartamento na capital. Em outubro do ano passado, a polícia prendeu uma pessoa que desde 2018 enganou pelo menos 10 vítimas, das quais roubou milhares de dólares, pesos e objetos de valor.

O episódio mais recente é o de uma vítima que foi induzida a retirar US$ 10 mil do banco porque «o Estado ia se apropriar para pagar a dívida do país» e, ao sair da agência, teve a mala onde levava o dinheiro roubada.

No interior do dicionário-cofre o único verbete disponível é ‘dólar colchão’

Imagem: Luciana Taddeo/UOL

Cofres-família

Leticia lembra que, há 4 anos, seu tio teve todas as suas economias, escondidas em um buraco sob os tacos do chão de madeira, furtadas, em Ramos Mejía, na Grande Buenos Aires. «Ele foi viajar e roubaram o que ele economizou durante a vida toda. Ficou tão angustiado por ter perdido tudo o que juntou, que morreu 3 ou 4 meses depois, com 73 anos», conta.

Ela, por sua vez, diz que guarda suas economias dentro do armário, sem muito cuidado, mas que de tempos em tempos leva os dólares para o pai, que trocou o jardim por um cofre no banco. «Eles continuam economizando em dólares», diz, contando que a opção por contratar este serviço se deve ao fato de que, «após a crise de 2001, os ladrões sabiam que as pessoas guardavam dólares em casa».

Hoje, cada membro da família tem um envelope com dólares no cofre: «Meu pai anota o dia em que colocamos, a cotação na qual compramos e o total de cada um», detalha, sobre a estratégia para evitar desentendimentos familiares futuros.

Quem guarda dinheiro em casa costuma ter tanta cautela que, em muitos casos, nem os filhos sabem a localização do esconderijo. A mãe e o tio de Leticia tiveram que procurar os dólares da mãe, espalhados pela casa, durante vários dias quando decidiram passá-los para o cofre. A jornalista Daniela*, 47, passou três dias do luto da morte do pai procurando, com os irmãos, onde ele tinha escondido os seus. Aos poucos, foram encontrando pela casa maços de dólares dentro de caixas de som e de sapatos – e até sob um vaso de plantas.

Ele também tinha um cofre, mas dizia não confiar em somente um lugar para guardar suas economias, conta a jornalista. Ela própria admite ter alguns dólares em casa para o caso de precisar, embora mantenha o grosso de suas economias nessa moeda no cofre de uma empresa que oferece este serviço.

«Na maioria dos países, valores monetários são guardados nos bancos por ser lógico estarem em um lugar para investir, e cofres são usados para guardar documentação, jóias, back up de informação, criptowallets e objetos de valor sentimental. Na Argentina, por desconfiança e reiteradas crises, a população se protege na moeda norte-americana e muitas vezes guarda esses dólares em cofres de entidades bancárias ou entidades fora dos bancos», explica Juan Piantoni, presidente da Ingot, empresa que aluga cofres com sistema robotizado que funcionam 24 horas para seus clientes.

Em alta: empresa oferece cofres automáticos que funcionam 24 horas por dia

Imagem: Divulgação/Ingot

Cofre dentro do colchão

A empresa oferece salas para transações de compra e venda, com mesa de reunião e aparelhos para contar o dinheiro e verificar a autenticidade das cédulas. Daniela recebeu em uma dessas o pagamento pela casa do pai, em dólares e à vista, como costuma acontecer com as propriedades na Argentina, quando decidiu vendê-la, em 2016.

Mas nem todos estão dispostos a pagar cerca de 20 dólares mensais pelo aluguel de um cofre. «Guardo tudo em casa, mas deixo pesos espalhados em lugares mais óbvios para atrair o ladrão para esses lugares e ele não procurar os dólares», conta o zelador Demetrio, que nunca recuperou o dinheiro que tinha depositado em 2001: «O banco desapareceu e o dinheiro também.» Depois disso, ele só economizou em dólares e, com o dinheiro que juntou, construiu uma casa e já está erguendo sua segunda propriedade.

Segundo o zelador, muita gente faz jus ao nome deste tipo de economia, conhecida localmente como «dólar colchão», e esconde sua bolada no lugar onde dorme. A forma mais conhecida é abrindo um rasgo no colchão, mas ele garante já ter visto um lugar que instalava, sob encomenda, cofres dentro de colchões.

Em cerca de dez lojas de colchões da capital argentina, porém, vendedores afirmaram a TAB não terem ideia da existência desse serviço. «Nunca vi, mas você me deu uma boa ideia. Pode vender muito na Argentina», respondeu um deles.

*Nomes fictícios.